voltar VOLTAR
Instituições de Saúde na Bahia

Entre as experiências do homem na modernidade, o adoecimento pode ser entendido como um “acontecimento” em que se rompe a concepção da permanência histórica do vivido, fazendo surgir a singularidade, remetendo à primeira ameaça da experiência histórica humana quando o corpo ainda luta para ter um significado no jogo social. Envolvendo complexas dimensões numa perspectiva histórica, esse campo reflexivo vem sendo densamente discutido pelo projeto Inventário Nacional do Patrimônio Cultural da Saúde: Bens Edificados e Acervos, desenvolvido pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e que ora apresenta História da Saúde na Bahia: Instituições e Patrimônio Arquitetônico, 1808-1958, obra organizada por Christiane Maria Cruz de Souza & Maria Renilda Nery Barreto (constituída por quatro capítulos e um CD com 37 verbetes relativos aos bens patrimoniais médicos e de saúde no estado da Bahia).

No primeiro capítulo, A Santa Casa de Misericórdia da Bahia e a Assistência aos Doentes no Século XIX, Maria Renilda Nery Barreto reconstrói o percurso no qual as Misericórdias serão erigidas, a partir de 1549, em consonância com a fundação da cidade de Salvador e o funcionamento da América Portuguesa, observando as circularidades que faziam valer uma institucionalidade com o compromisso de, por um lado, estabelecer uma elite local e, por outro, permitir que o sistema colonial fosse gerido por meio da prestação de assistência médico-cirúrgica a um número maior de pessoas: presos, soldados, estrangeiros, marinheiros, alienados, mendigos e escravos.

Com o estudo pormenorizado do cotidiano do Hospital São Cristóvão, denominação dada ao hospital da irmandade baiana, a autora mostrou recuos e avanços nesse processo de assistência, sobretudo, com o impacto das transformações da sociedade política brasileira no século XIX, que, alargada pela administração imperial nacional, tentava impor seus próprios elementos distintivos entre “os de fora” e “os de dentro” do território, figurando, exemplarmente, a presença dos escravos e sua relação com as demandas desse hospital.

No segundo capítulo, Saúde Pública e Assistência na Bahia da Primeira República, 1889-1929, Christiane Maria Cruz de Souza & Gisele Sanglard tecem o intrincado período das mudanças decorrentes da nascente república brasileira, com suas articulações políticas aliadas às atribuições imperativas que o estado da Bahia recebeu para imprimir em seu território uma concepção de saúde pública abrangendo ações de cunho estatal e de dimensão filantrópica. Na perspectiva de uma medicina social nascida no século XIX pautada numa concepção de salubridade e no controle das classes trabalhadoras, as ações higienistas consideradas capazes de deter epidemias e endemias que avançavam, sobretudo, na cidade de Salvador representaram o esforço de muitos grupos e da centralidade de medidas infraestruturais.

Nas primeiras décadas do século XX, as elites baianas perceberam que a presença do Estado seria decisiva para que sua capital se desenvolvesse paralelamente ao enfrentamento de sua situação calamitosa no campo da organização urbana e da saúde pública. Isso envolveu a administração de vários governadores, tendo, a partir de 1912, a figura centralizadora de J. J. Seabra enfeixado ações anteriores e conduzido um processo para organizar uma série de medidas como reformas urbanas, vigilância sanitária e serviços técnicos de engenharia sanitária, desinfecção e inauguração de institutos paralisados. Nesse contexto, a filantropia se mostrou fundamental no âmbito de certas políticas de saúde, revelando as interfaces entre público e privado para a constituição de uma rede de assistência que culminaria, em 1925, no Código Sanitário e na criação da Secretaria de Estado da Educação, Saúde e Assistência Pública.

Há um estudo particular desse contexto no terceiro capítulo, Medicina, Filantropia e Infância na Bahia: Um Hospital para Crianças, 1920-1930, de Luiz Otávio Ferreira & Maria Martha de Luna Freire. Numa interessante incursão pelo tema da infância e das articulações em torno da saúde infantil em solo baiano, os autores apresentam como a assistência conjugou medicina e ações filantrópicas, forjando um misto de modelos institucionais articulados a dimensões ideológicas e políticas do período, ultrapassando iniciativas anteriores como a roda dos expostos ou a criação dos abandonados.

Os saberes tecnológicos médicos da puericultura e da pediatria passaram a exigir novas estratégias que deveriam não só amparar a criança, mas acompanhar seu desenvolvimento até que ela se tornasse uma força nacional e produtiva. Essas medidas encerravam temas como a maternidade, a mortalidade infantil, a alimentação, o asseio e a educação. A partir da implantação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância da Bahia (IPAI-BA), em 1903, fruto da liderança das senhoras da elite local e dos médicos Alfredo Magalhães e Joaquim Augusto Tanajura, instauravam-se medidas que contemplariam tais saberes desde um dispensário para moléstias até um hospital para crianças. Os autores delineiam esse processo modelar médico-filantrópico através do projeto de construção do hospital para crianças entre 1923-1936, em meio às manifestações de apoio para a obtenção de recursos, os conflitos políticos locais e inúmeras pendências jurídicas, retendo nessa análise, justamente, o entrelaçamento do Estado e da filantropia no campo da infância e suas particularidades constitutivas.

Finaliza essa obra o capítulo quatro, Arquitetura Moderna e as Instituições de Saúde na Bahia nas Décadas de 1930 a 1950, de Nivaldo Vieira de Andrade Junior. Para o autor, a produção arquitetônica na Bahia no período tratado consistiu, inicialmente, numa série de projetos executados por arquitetos de fora, tendo esse quadro se modificado nos anos 1940, pela presença de Diógenes Rebouças, que, mesmo sendo engenheiro, imprimiu uma marca substancial no Plano Urbanístico da Cidade de Salvador (EPUCS) redefinindo, com sua equipe, o projeto paisagístico da cidade seguindo uma série de vertentes arquitetônicas, articulado, é claro, a todo tecido urbano da antiga urbe dos séculos precedentes.

Segundo Andrade Junior, toda essa mudança trazida por uma “arquitetura moderna” teve nas edificações hospitalares e de saúde uma importante contribuição tanto para as mudanças infraestruturais de Salvador e algumas cidades do interior da Bahia como para a consolidação da arquitetura moderna do estado; entre os anos 1930 e 1950, ergueram-se hospitais públicos e instituições de saúde com recursos estaduais, federais e de grupos locais. Dentre os desdobramentos dessa rede hospitalar e de saúde, destacaram-se as ações no campo da infância com o Posto de Puericultura de Campo Formoso, Cipó e Isolina Guimarães, a Escola de Puericultura de Raymundo Pereira de Magalhães e o Hospital da Liga Bahiana contra a mortalidade infantil.

Também a tuberculose foi alvo de ações correspondentes; por exemplo, o Instituto Brasileiro para Investigação da Tuberculose (IBIT), projetado por Hélio Duarte, cujo pavilhão mais antigo foi construído em 1942 e a última parte, o Hospital do Tórax, inaugurada em 1971, e o Hospital Sanatório Santa Terezinha, que, retirado da área central da cidade, pretendia isolar os pacientes considerados ‘perigosos’ do contato com as aglomerações urbanas e, ao mesmo tempo, em grandes varandas em espaços ainda não habitados, favorecer ações terapêuticas aos internos. Enfim, esse capítulo faz um importante mapeamento dessa rede institucional, consolidando e validando a necessidade de se estabelecerem políticas mais precisas para o uso e a manutenção desses bens públicos, promovendo pesquisas e divulgando a relevância dessas instituições para a história dos bens patrimoniais da Bahia e do Brasil.

URL: https://www.misba.org.br/instituicao/instituicoes-de-saude-na-bahia-1/
Acesso em: 09/11/2024 22:28:21